Reflexões sobre as Dez Medidas Contra a Corrupção

Levando em conta o debate sobre as Dez Medidas Contra a Corrupção, iniciemos uma reflexão a partir de elementos historiográficos. Imprescindível é a análise do discurso que orienta e influencia tais propostas – até pelo fato incontroverso que tal discurso já permeia o meio jurídico e político, de maneira que acabam as propostas sendo efetivadas pelos mais diversos canais, muitas vezes não legislativos.
 
Exemplo claro é a superação, pelos acontecimentos, da sugestão quanto à possibilidade de execução provisória da pena. O tema se insere no inciso LVII do art. 5º da CF, cláusula pétrea, o que poderia se inserir numa dimensão de tranquilidade para o intérprete garantista. Seria, em tese, um obstáculo intransponível para a efetivação da sugestão. O texto, de conteúdo claro, foi relido numa interpretação que se insere neste discurso, apontando a sua absorção pela maioria dos integrantes da corte constitucional.
 
Cabe, num primeiro momento, relembrar o Malleus Maleficarum, documento de conteúdo amplo, que marca um momento de enfrentamento aos riscos à segurança pública e ao bem comum. Procurava apresentar um conceito e o iminente perigo social, político e religioso da bruxaria, transformando um modelo de conduta em um instrumento de poder político.
 
Marcantemente misógino, assinala o contexto da heresia numa realidade de guerra ao gênero. Praticamente todas as mulheres acusadas de heresia passaram a ser acusadas de bruxaria, identificando a mulher com ameaças diabólicas, relacionando-se a figura feminina com a manifestação do diabo. Assinala também uma necessidade de se ampliar cada vez mais os poderes de condenação dos tribunais.
 
O discurso oficial era de que a primeira e mais relevante prioridade era que se combatesse o mal e o diabo, pouco importando os reflexos humanísticos, sociais e econômicos para a sociedade. Era estabelecido que, para que o mundo cristão pudesse viver em paz e ordeiramente com a divindade, deveria ser ferrenhamente empreendido um combate à heresia e às interferências do diabo.
 
Com o passar do tempo, a bruxaria (muitas vezes relacionada a práticas religiosas pagãs das populações que ocuparam o império romano), tornou-se uma equivocada justificativa às recorrentes crises do período – crises sociais e econômicas que culminaram numa visão de mundo, procedimentos burocráticos e práticas judiciais que se estenderam por longo período.
 
É certo que, numa perspectiva histórica mais ampla, a bruxa não constituiu elemento único do imaginário medieval em sua busca por “bodes expiatórios”. Outras categorias, como judeus, prostitutas, doentes e hereges ainda foram reiteradamente inseridos como influenciadores de acontecimentos cotidianos nefastos. Mas para a crítica que aqui se desenvolve, o discurso misógino do documento é fundamental para que se trace um paralelo com o discurso punitivista atual. O documento marcantemente apresenta mecanismos de desqualificação e inferiorização da mulher.
 
Ao se empregar como metodologia a análise do discurso, buscamos identificar a intenção política dos envolvidos, no seu sentido jurídico-político. Na proposta de se fazer um paralelo com os tempos atuais, busquemos identificar, no discurso que orientou ou inspirou tanto a maioria do STF ao decidir as ADC 43 e 44, como os doutos Procuradores da República e outros profissionais na formatação das Dez Medidas, traços de uma coerência lógica voltada ao punitivismo.
 
O contexto fático que contribuiu para o radicalismo do Malleus Maleficarum passou por fatores de profunda insegurança da população – com guerras generalizadas decorrentes da crise do sistema político em mutação, fome e doenças epidêmicas – e pode ser incrementado com um discurso oportunista de que tudo era uma manifestação diabólica e que a solução passava pela culpabilização das responsáveis pelas atitudes do maligno – pois os cultos sabáticos das bruxas ofendiam a divindade e violavam os princípios da fé. Ademais, tudo poderia ser efetivamente combatido pelos tribunais da Inquisição.
 
Mesmo com o incremento da violência dos castigos e a massificação dos condenados, as guerras e a peste continuaram a matar milhares de pessoas, assim como os pratos continuaram vazios. A bruxaria ganhou um protagonismo que nunca tivera. Para combater o inimigo, lançou-se mão de uma ação política e judicial, com recursos específicos presentes na tortura, na força, nos processos arbitrários e, finalmente, na fogueira.
 
Ora, se se pretende imprimir maior eficácia às leis processuais penais, parte-se do princípio implícito de que elas são ineficazes. Ineficazes? Nunca se prendeu tanto na história do Brasil como hoje.
 
As sugestões sob crítica partem do pressuposto de que o grande mal a ser combatido é a corrupção, como se esta fosse a única manifestação relevante para o enfrentamento do fenômeno crime (o crime organizado cevado e engordado nos presídios é aparentemente secundário). E mais: apresenta como incontroverso que o direito penal é a única e a mais perfeita forma de se enfrentar o fenômeno crime na sociedade.
 
O encarceramento seria a purgação deste mal, pouco importando o mal que os processos venham a causar à economia nacional, aos valores e relações sociais, com a indução de um estado de violência e frustração face à inefetividade das medidas e providências, pois o crime e a violência dos criminosos só crescem. E nem todos, seletivamente, são trazidos às barras dos tribunais, mesmo arbitrariamente.
 
Tanto quanto como os religiosos de antanho se afirmavam na autoridade de representar a voz de Deus, os modernos arautos das medidas moralizadoras, com especial destaque para parcela do MPF engajada na divulgação e efetivação das Dez Medidas, afirmam, com a autoridade que lhe é peculiar, que são a real fonte qualificada para comandar e tomar a frente da solução desses problemas e fatos sociais.
 
Por João Thomas Luchsinger, Publicado 7 de Novembro, 2016
Defensor Público Federal e Professor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas
 
Fonte: Jota.info

09/11/2016 às 10:55